terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O relatório de Luciano Freire

O restaurador Luciano Freire, no seu "Elementos para um relatorio acerca do tratamento da pintura antiga em Portugal", datado da década de 1930, deixou registado quer a forma como encontrou os painéis que constituem o tríptico quer a sua intervenção:


O grande triptico flamengo existente na igreja de S. João Batista de Tomar, representando o painel central “O Batismo de Christo” e os lateraes as “Bodas de Caná” “Tentação de Christo”, e no reverso a claro escuro, “S. André” e S. João Evangelista, existia desmantelado e dispersos os seus elementos pela capela mór e sacristia. 

Foi ao retirar-se, para tratamento, o painel “Bodas de Caná”, que decorava lateralmente essa capela, e que era o que necessitava mais pronto socorro, que se reconheceu que tinha por detraz pintura a claro escuro, e que portanto se tratava da porta de um triptico, o que levou logo a retirar do logar o que lhe ficava fronteiro, do lado da Epistola, por se supôr que teria sido o companheiro, o que se confirmou. Onde pararía a parte central? O reconhecer-se como obra da mesma mão, o quadro existente na sacristia, representando o Batismo de Christo, e ainda pelo assunto, levou-nos ao convencimento de que estava ali o que buscáva-mos. Faltava, porem, a este painel bastante na largura, para poder servir como peça central, mas logo se verificou tambem que tinha havido mutilação para o ajustar ao lugar onde se encontrava. D'aí o aceitar-se logo como logica o que se supozera. Nas portas os córtes foram realisados na parte superior numa delas e inferior da restante. Isto para as ajustar ás linhas arquitetonicas da aludida capela. Não havia pois outra cousa a fazer do que reunir agora esses elementos, fazendo-os voltar á sua antiga situação.

No painel que decorava o lado do Evangelho e que representa as “Bodas de Caná”, e que era o mais estragado de todos, por lhe dar o sol em determinados periodos do ano, mal se percebia o que representava, tal a sugidade e negridão dos vernizes. Déra-se em muitos pontos a queda da tinta, sendo a maior avaria dessa natureza, a que incidiu na personagem que no primeiro plano, está vasando um balde de agua num dos muitos recipientes em cobre agrupados em volta. A essa figura já faltava alem de parte das roupagens, quasi toda a cabeça, da qual apenas restava um olho, a ponta do nariz e parte do couro cabeludo, que simula ser rapado. Completou-se, essa figura por ser isso indispensavel para o efeito de conjunto, mais sem a preocupação de iludir o observador perito. E não deixou ainda assim de me repugnar esse procedimento. Mas há casos que podem mais do que as leis. Havia ainda enumeraveis faltas de tinta, mas em sitios menos importantes. Este painel era o que estava mutilado pela parte superior e com uns recortes lateraes para, como disse, se ajustar ao apainelado, onde á força o colocaram. A pintura a claro escuro do reverso é que nos indicou bem as dimensões da mutilação, visto as figuras ali representadas estarem colocadas em nichos e esse promenor de formas regulares e simétricas ser o atingido pelo córte que o painel sofrera. A outra porta do lado que representa a “Tentação de Christo”, estava tambem muitissimo suja mas pouco avariada. As faltas de tinta, embora numerosas, eram de somenos importancia. O reverso a claro escuro esse estava regularmente conservado, em ambas as portas. O painel central, representando o “Batismo de Christo”, não estava com muito mau aspecto, faltava-lhe porem, como disse, uma tabua de cada lado, e sem a sua colocação não seria possivel o armar o triptico. O córte que fizeram não afectando pormenor de importancia, não repugnou completar a superfície do quadro embora sempre com a preocupação de não iludir ninguem.

[...] no tratamento deste painel, a grande dificuldade material foi o não se encontrar madeira de carvalho do cumprimento necessario para o completar. Por causa deste contratempo esteve por muito tempo sustado o respectivo tratamento. Por fim resolveu-se o caso adquirindo uma muito antiga vára de lagar, que aberta em varias folhas forneceu o ambicionado elemento para se poder prosseguir nos trabalhos, e ainda noutros que aguardavam recurso identico. O trabalho de restauro consistiu principalmente, em completar a parte agora acrescentada.

Facilitaram a tarefa da obtenção destes quadros para tratamento, o “Grupo dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Christo” e em especial o coronel Francisco Garcez Teixeira, muito devotado causa, que também contribuiram pecuniariamente para o respectivo emolduramento, e meios de transporte quando da devolução. Antes, porem, de ser entregue foi objecto de preocupação o local que se devia dar a esse triptico, onde tivesse não só situação condigna como ficasse ao abrigo de intemperies, tanto quanto isso fosse possivel, e de outras contingencias, incluindo as contundentes.

Assentou-se afinal, e bem, que o Batistério, uma vez desantravancado e reintegrado na sua feição primitiva satisfaria optimamente a todos os quesitos, com a circunstancia de ser talvez o logar para onde esse triptico fôra pintado.

  
Luciano Freire, "Elementos para um relatorio acerca do tratamento da pintura antiga em Portugal", Conservar Património, 5, 2007, pp. 9-65.

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