O grande triptico flamengo existente na igreja de S. João Batista de Tomar, representando o painel central “O Batismo de Christo” e os lateraes as “Bodas de Caná” “Tentação de Christo”, e no reverso a claro escuro, “S. André” e S. João Evangelista, existia desmantelado e dispersos os seus elementos pela capela mór e sacristia.
Foi ao retirar-se,
para tratamento, o painel “Bodas de Caná”, que decorava
lateralmente essa capela, e que era o que necessitava mais pronto socorro, que
se reconheceu que tinha por detraz pintura a claro escuro, e que portanto se
tratava da porta de um triptico, o que levou logo a retirar do logar o que lhe
ficava fronteiro, do lado da Epistola, por se supôr que teria sido o
companheiro, o que se confirmou. Onde pararía a parte central? O reconhecer-se
como obra da mesma mão, o quadro existente na sacristia, representando o Batismo
de Christo, e ainda pelo assunto, levou-nos ao convencimento de que estava ali
o que buscáva-mos. Faltava, porem, a este painel bastante na largura, para
poder servir como peça central, mas logo se verificou tambem que tinha havido
mutilação para o ajustar ao lugar onde se encontrava. D'aí o aceitar-se logo
como logica o que se supozera. Nas portas os córtes foram realisados na parte
superior numa delas e inferior da restante. Isto para as ajustar ás linhas
arquitetonicas da aludida capela. Não havia pois outra cousa a fazer do que
reunir agora esses elementos, fazendo-os voltar á sua antiga situação.
No painel que
decorava o lado do Evangelho e que representa as “Bodas de Caná”, e que era o
mais estragado de todos, por lhe dar o sol em determinados periodos do ano, mal se percebia o que representava, tal a sugidade e negridão
dos vernizes. Déra-se em muitos pontos a queda da tinta, sendo a maior avaria
dessa natureza, a que incidiu na personagem que no primeiro plano, está vasando
um balde de agua num dos muitos recipientes em cobre agrupados em volta. A essa
figura já faltava alem de parte das roupagens, quasi toda a cabeça, da qual
apenas restava um olho, a ponta do nariz e parte do couro cabeludo, que simula
ser rapado. Completou-se, essa figura por ser isso indispensavel para o efeito
de conjunto, mais sem a preocupação de iludir o observador perito. E não deixou
ainda assim de me repugnar esse procedimento. Mas há casos que podem mais do
que as leis. Havia ainda enumeraveis faltas de tinta, mas em sitios menos
importantes. Este painel era o que estava mutilado pela parte superior e com
uns recortes lateraes para, como disse, se ajustar ao apainelado, onde á força
o colocaram. A pintura a claro escuro do reverso é que nos indicou bem as
dimensões da mutilação, visto as figuras ali representadas estarem colocadas em
nichos e esse promenor de formas regulares e simétricas ser o atingido pelo
córte que o painel sofrera. A outra porta do lado que representa a “Tentação de
Christo”, estava tambem muitissimo suja mas pouco avariada. As faltas de tinta,
embora numerosas, eram de somenos importancia. O reverso a claro escuro esse
estava regularmente conservado, em ambas as portas. O painel central,
representando o “Batismo de Christo”, não estava com muito mau aspecto,
faltava-lhe porem, como disse, uma tabua de cada lado, e sem a sua colocação
não seria possivel o armar o triptico. O córte que fizeram não afectando
pormenor de importancia, não repugnou completar a superfície do quadro embora
sempre com a preocupação de não iludir ninguem.
[...] no tratamento deste painel, a grande
dificuldade material foi o não se encontrar madeira de carvalho do cumprimento
necessario para o completar. Por causa deste contratempo esteve por muito tempo
sustado o respectivo tratamento. Por fim resolveu-se o caso adquirindo uma
muito antiga vára de lagar, que aberta em varias folhas forneceu o ambicionado
elemento para se poder prosseguir nos trabalhos, e ainda noutros que aguardavam
recurso identico. O trabalho de restauro consistiu principalmente, em completar
a parte agora acrescentada.
Facilitaram a tarefa
da obtenção destes quadros para tratamento, o “Grupo dos Amigos dos Monumentos
da Ordem de Christo” e em especial o coronel Francisco
Garcez Teixeira, muito devotado causa, que também contribuiram
pecuniariamente para o respectivo emolduramento, e meios de transporte quando
da devolução. Antes, porem, de ser entregue foi objecto de preocupação o local que se devia dar a esse triptico, onde tivesse não só situação condigna
como ficasse ao abrigo de intemperies, tanto quanto isso fosse possivel, e de
outras contingencias, incluindo as contundentes.
Assentou-se afinal,
e bem, que o Batistério, uma vez desantravancado e
reintegrado na sua feição primitiva satisfaria optimamente a todos os quesitos,
com a circunstancia de ser talvez o logar para onde esse triptico fôra pintado.
Luciano Freire, "Elementos para um relatorio acerca do tratamento da pintura antiga em Portugal", Conservar Património, 5, 2007, pp. 9-65.
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